terça-feira, 26 de abril de 2011

A SITUAÇÃO-LIMITE E O DESTINO TRANSCEDENTE DO HOMEM

4.1 Transcendência e fracasso

O ser embora constitutivo da existência, infinitamente a transcende.
A existência é ao mesmo tempo, para Jaspers, a impossibilidade radical da existência. Desta impossibilidade radical aborda na obra Filosofia III ou Metafísica; onde se pode constatar que todo o esforço humano para ultrapassar o mundo da experiência só pode conseguir imitar este mesmo mundo, produzindo uma cópia do ser-em-situação e projectando-a no além: “A razão não pode pensar a transcendência a não ser como Dasein no próprio plano do mundo (...) A transcendência é então o outro Dasein, o do além, o que não se acha aqui” (MONDIN, op. cit.:196). ‘A existência é busca do ser; mas o ser não é uma possibilidade da existência ’ (ABAGNANO, op. cit.:73). O ser é transcendente e, como tal, só pode ter uma e única característica possível de se manifestar ao homem; precisamente a impossibilidade de o alcançar.

A transcendência pode ser exprimida como realmente presente à existência humana como uma cifra, símbolo e, dado que os símbolos não valem como tal, necessitando infalivelmente de uma interpretação que, feita por homens, não pode prescindir daquilo que o próprio homem é; “toda a cifra ou símbolo interpretado pela existência é uma confirmação de que a existência não pode ser senão o que é” (Ibidem).

A transcendência revela-se naquilo a que Jaspers denomina de situação-limite; isto é, situações imutáveis, definitivas, intransponíveis; frente às quais toda a rebelião humana é insensata: o homem mais nada de racional pode fazer senão tomar consciência delas e torná-las esclarecidas. “Abrir-se para a transcendência quer dizer superar continuamente os nossos horizontes limitados para conquistar novos e mais amplos, nos quais possa encontrar sempre maior satisfação a nossa ânsia de verdade. Tal esforço está destinado ao fracasso mas, este fracasso torna-se constitutivo da nossa existência, que se torna quotidiana conquista de uma verdade sempre mais compreensiva e mais alta” (LUMIA, op. cit.:54).

Encontrar-se em situação-limite  significa não poder não”: não poder não sofrer, não poder não lutar pela vida, não poder não viver na dor, não poder não pecar, não poder não morrer... e, esta última, a morte é, para Jaspers, a maior de todas e qualquer situação-limite; que ao distinguir entre situação-limite geral e situação-limite especificamente individual, a morte compreendeu os dois níveis: ela é uma situação-limite geral do mundo; ou seja, tudo o que é real no mundo é mortal, sem excepção, e é ao mesmo tempo uma situação especificamente humana, isto é, atormenta todo o homem e o corrói no seu íntimo logo que ele se constitui como autoconsciência pessoal. Portanto, a situação-limite é a revelação mais clara da impossibilidade constitutiva da existência em que o homem se encontra (Cf. MONDIN, op. cit.:196-197).

O sinal mais evidente da transcendência é o Fracasso que o homem sofre na tentativa de superar ou compreender  de alguma maneira a situação-limite; nem a razão mais esclarecida oferece alguma prova de que o homem possa evitar tal situação. Neste fracasso, a própria transcendência faz sentir a sua presença.

4.2 Fé e Revelação

Jaspers, contemporaneamente, acentuava em aberta polémica os aspectos metafísicos e teológicos da sua especulação, fez notar o facto de as três partes da sua  filosofia corresponderem às três ideias da metafísica clássica: o mundo, a alma e Deus; e mesmo considerando-as uma espécie cifra ou símbolo, insistiu na semelhança para além das diferenças do seu ponto de vista com a metafísica clássica. Evidenciou o papel de guia da teologia tradicional como “conscientização racional da fé”. Insistiu ainda  na exigência de “incondicionalidade” a que a fé corresponde.

Ele realça o valor da fé como revelação e manifestação imediata do ser transcendente. Parte do conceito “horizonte englobante ou tudo-compreendente”  que compreende todos os modos possíveis de manifestações do ser no homem. A fé é a própria vida na medida  em que retorna à origem misteriosa da vida, um retorno em virtude do qual as coisas perdem o seu carácter absoluto e o ser se manifesta numa experiência inexprimível, que os místicos viveram e descreveram metamorficamente.

Aponta-se na fé a via para nos subtrairmos do mundo e nos pormos de novo em contacto com o ser que está para além dele. A fé é auto-esclarecimento da existência na sua “profundidade ultraconceptual”, auto-esclarecimento que é, simultaneamente, a decisão de se identificar com essa profundidade (ABAGNANO. op. cit.:77). A  incondicionalidade dada através da fé é de per si intemporal; e a sua revelação histórica são as situações-limite.

A única faculdade humana capaz de revelar o mistério das situações-limite, da morte em particular é, segundo Jaspers, o amor, ele dá a certeza de que a morte não é um abismo ao qual nos precipitamos irremediavelmente, mas pelo contrário, é como se por seu intermédio, nos reuníssemos às existências com as quais nos comunicávamos de modo mais íntimo. “O salto (da morte) é como o nascimento de uma nova vida. A morte é absorvida pela vida... É como se, não mais abandonado, me agarrasse à existência que se achava na mais íntima comunicação comigo” (MONDIN, op. cit.:197).

 Nestas situações e em toda parte, o mundo é qualquer coisa de “evanescente”. Deus e a existência – a existência autêntica que é fé – são a única realidade “eterna” (Ibidem).
Jaspers defende uma religiosidade que, ao mesmo tempo que recusa identificar-se com uma das religiões históricas, pretende ser a origem e o fundamento de tudo. A visão histórica de Jaspers é também substancialmente uma teologia da história

No naufrágio total de todas as possibilidades o homem não pode encontrar mais do que resignação e silêncio, que são a garantia de uma Paz que já não é ilusória porque se baseia na certeza do ser que se revelou na sua necessidade. O naufrágio histórico de uma verdade pode acontecer que se encontre  ancorado não na história, mas na eternidade. A fé constitui o único acesso à eternidade.

Note-se que apesar das aparências, a tendência da filosofia de Jaspers não é ateia, mas cristã, de um cristianismo protestante que se recusa a reconhecer à razão humana qualquer capacidade para as verdades religiosas (MONDIN, op. cit.:196). Aliás, movido por sua alta sensibilidade moral e convencido de que não há grande filosofia sem pensamento político, escreveu sobre o “problema da bomba atómica e a culpa da Alemanha” em 1946, opondo-se firmemente ao nazismo onde na conclusão faz lembrar o profeta Jeremias que não se desespera diante da destruição de Jerusalém e da deportação dos Judeus e afirma: “Tudo isto significa que Deus existe – isto basta. Se tudo desvanece, Deus existe; esse é o único ponto seguro para nós” (Cf. REALE, op. cit.:597). Jaspers, nas suas últimas obras tornou-se o profeta religioso de Deus e da Sua revelação vindoura.

1 comentário:

  1. Caro amigo e colega académico,
    sou alemão, mas vivo há 20 anos no Algarve. Estudei na Universidade Católica Portuguesa em Lisboa e consegui convencer os meus professores de traduzir a obra "Der philosophische Glaube" em vez de elaborar uma dissertação de mestrado.
    Uma vez que quase não existem obras traduzidas de Jaspers, se quiser, mando-lhe uma copia em formato .pdf.

    Não concordo consigo quando diz "profeta religioso". Jaspers, uma grande conhecedor do Antigo Testamento, rejeita o Deus institucionalizado nas religões, rejeita a Trindade, qualquer tipo de dogmatismo e a verdade absoluta. Claro que não é ateu, mas acredita num deus filosófico.

    Saudações
    Thomas Schmidgen
    e-mail:thomas.schmidgen@sapo.pt

    ResponderEliminar

Ensinamento bíblico sobre a santidade

Ensinamento bíblico sobre a santidade A ideia da santidade não é exclusiva da Bíblia judeu-cristã mas, também se encontra em diversas c...